terça-feira, 8 de julho de 2014

O PALHAÇO CHEGOU

O palhaço chegou.
Maria abra a porta,
o palhaço chegou,
o palhaço, Maria.
E o sereno que cai
vai lavando-me a cara,
não cessa, não para.
Maria, abra a porta,
a noite está fria.
Como é engraçado,
Maria, o telhado,
molhado,
escorrendo por cima
de mim.
E o sereno não passa
e eu cheirando à cachaça
vou batendo na porta,
e você nem assim;
ainda finge estar morta,
nem liga pra mim.
O palhaço chegou,
Maria, abra a porta,
o palhaço chegou,
o palhaço, Maria.
Como é engraçado;
eu com sono danado,
com fome, cansado
e Maria dormindo
não escuta eu bater.
Daqui a pouco
eu me invoco
e sufoco num copo
o meu agro sofrer.
O palhaço chegou,
Maria, abra a porta,
o palhaço chegou,
o palhaço, Maria.
Aha-há-há-há-há...
De que é que estão rindo?
Do palhaço que sou?
Das pancadas inúteis
na porta que eu dou?
Ou da minha fachada?
Se é briga que querem,
venham todos,
eu enfrento.
Se vierem todos
parar aqui dentro,
eu vou vazar pelos fundos
sumindo na estrada.
 
Ninguém tem o direito
de rir,
só Maria.
Só Maria é que pode
rir do palhaço,
do palhaço que sou.
Maria, abra a porta,
abra a porta, Maria;
o palhaço chegou.
Maria, Maria.
Amanhã vou comprar geladeira
e uma TV pra nós dois sozinhos
assistirmos aos grandes programas
sem ser mais preciso
ir ver nos vizinhos.
Maria, Maria.
O que é que se passa?
Será que a cachaça
roubou o amor
que você possuía?
Antigamente brigávamos,
bem sei, é verdade,
mas depois de eu bater
de uma noite a metade,
a porta se abria.
Tu fingias zangada
e deitavas calada
sem me dar nem bom dia,
também era noite,
mas nem boa noite me davas.
Mas no fundo, Maria,
tu gostavas de mim
e a mim perdoavas.
E hoje a porta trancada,
cerrada, malvada,
não abre, por quê?
Eu bebo na rua,
os amigos me pagam,
mas depois
os amigos me chutam,
só quem me atura é você.
Maria, abra a porta,
abra a porta depressa,
estão rindo aqui fora
do palhaço, Maria,
do palhaço que é teu.
Maria, eu prometo,
se abrires agora,
esta noite, Maria,
foi a última noite
que o palhaço bebeu.
Maria, não deixa
eu dormir na calçada,
se não vem o guarda
e leva-me preso
e todos vão rir:
“O palhaço cachaça
foi preso na rua,
pau d’água não tem
amores, nem casa,
nem onde dormir.”
Todos hão de sorrir,
hão de se divertir
com o palhaço que sou.
Maria,
não precisa,
deixa a porta fechada,
vem surgindo a alvorada,
a noite passou.
Quando eu digo palhaço,
você ri, me critica,
mas vê bem se não fica
certinho: palhaço!
 
O palhaço bateu,
chamou, te implorou;
novo sol já raiou
e Maria dormindo
não escuta eu chamando,
batendo e dizendo:
o palhaço chegou!