quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Um adeus pra quem fica


Meu barraco,
aqui eu estou me despedindo,
nem sei como pôde acontecer
como foi possível ter-se findo
essa alegria
constante de viver.
Meu barraco,
agora eu vou embora,
ganhamos um apartamento
na cidade.
Dizem que lá tem mais comodidade
tem água com fartura
e a pintura
é linda realmente.
Tem chuveiro de água fria.
de água quente,
tem luz, tem campainha
e a cozinha é toda de azulejo.
Mas barraco, eu não vejo
porque mudar daqui.
Vou por imposição
de muita gente
que diz que é incontinente,
que há uma necessidade
de partir.
Por aqui vai passar
uma larga avenida.
É barraco, é a vida.
Eu já sei
que deves ter percebido
que hás de ser destruído,
mas não ligas barraco,
vão destruir tem corpo,
mas não tua saudade
e a gente vive, barraco,
a eternidade
se viveu e marcou;
e tu ficaste marcado
na verdade
que um dia te mostrou.
Eu quisera barraco
continuar daqui
vendo o mundo de cima,
com bastante humildade,
mas me mandaram descer
e viver na cidade.
Adeus, meu barraco,
decerto estás fraco
e a fraqueza é o prenúncio
do fim da existência,
mas não peças clemência,
sabes bem como é:
morrer com decência
é findar-se de pé.
Já vou, meu barraco,
já vou pra cidade
e decerto a saudade
há de me cruciar,
eu sei, meu barraco,
que é dura a verdade,
dá até pra chorar.
Mas não temas a morte,
enfrenta o suplício,
não invejes a sorte
do grande edifício
onde eu vou me alojar.
Tu não tinhas com quê,
mas gostavas de dar,
e na cidade, barraco,
é comum dar-se as mãos
pra poder se mostrar
e barraco, barraco,
no teu lampião,
no teu zinco furado,
na beleza do chão
tão batido e cansado,
eu achei poesia,
ternura,
verdade
que eu sei não vou ter
se viver na cidade.
Não lamentes, barraco,
teu destino cruel.
Tu viveste bastante
bem junto do céu,
enfrentando problemas,
nem água, nem luz;
e no entanto barraco
quanto samba eu compus.
Quantos beijos já dei,
quantas vezes fiz cruz
e feliz me deitei.
Quantas vezes, barraco,
eu chegava cansado
e os moleques falavam
da escola do Estado.
Um passou de lição,
outro trouxe anotado
uma relação
de livros gozados
de inglês, de francês
que eu devia comprar,
mas sem ter pra pagar,
Tu te lembras, barraco?
Tu viveste essa vida,
tu sofreste comigo
essa estória comprida
e estiveste de pé
como o bom companheiro,
só por isso, barraco,
eu não findo primeiro.
Já vou, meu barraco,
não chores, barraco,
sorrias, barraco,
tu és mais importante.
O edifício
por mais elegante
e por mais requintado
não tem um tijolo francês
nem cimento importado,
e tu tens, meu barraco,
pedaços do mundo,
remendo que aos cacos
juntei pra compor,
seja lá como for:
maçãs argentinas,
whisky escocês
e por cima da porta
bacalhau norueguês,
português.
Foste feito aos pedaços,
pedaços do mundo
que andou pelos braços
dos mares profundos
nos grandes navios.
Pedaços, barraco,
dos homens doentios.
Pedaços de gente
de mil continentes
(Eu sei lá se tem mil!),
mas pedaços do mundo
que enfim é barraco
e é meu no Brasil.
Sorrias, barraco,
continuas vivendo
aqui dentro do peito
mesmo quando for feito
onde estás atualmente
um trabalho imponente,
uma estrada gigante,
e uma estrada gigante
não é tão gigante
pra mim o quanto és,
mas adeus, meu barraco,
a gente não pode
fugir do revés.

Nenhum comentário:

Postar um comentário