segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Protesto



Seu moço me dá licença
pra falar, que a vez é minha.
Meu nome é povo cansado
e ando meio danado
porque a fome se avizinha
e não tem nenhum letrado,
não tem um capacitado,
não tem um doutor formado
pra botar o trem na linha.
Eu tenho uma filha grande
e outra pequenininha,
tremem de frio no inverno,
comem feijão com farinha,
ovo frito dá pra dois,
vez em quando tem arroz,
vez por mês comem galinha
quando dá pra extravagância.
No peito eu tinha esperança,
por pouco não caducou;
já cansei de suplicar
pro Deus, Nosso Senhor,
porém na minha carteira
de trabalho, a vida inteira
não foi Deus que autografou;
Deus fala de amor, bondade,
ensina fraternidade
mas tem outra metade
que depende dos doutor,
que depende dos “sinhô”,
depende das excelências
que me pedem paciência,
paciente até que sou.
Seu doutor, nas minhas veias
não corre sangue vermelho;
meu sangue é verde e amarelo
e se baterem o martelo
“quanto dão pelo país”
eu dou a vida doutor,
dou a vida sim senhor.
E morro de tanto amor
e faço mais do que fiz
até se preciso for,
pois doutor eu sou raiz.
Povo é a força pela dor
que ainda espera ser feliz
e se alguém sonha com flor
que cuide dessa raiz.
Eu tenho nas minhas mãos
medalhas que conquistei
no concreto que virei,
no aço que temperei,
no volante que girei
levando a festa na estrada.
No tronco que derrubei,
recebendo um quase nada;
na cana que já ceifei,
no feijão que temperei,
no remédio que inventei,
nas lições que eu já ensinei,
nos trigos que semeei,
no café que debulhei,
nas peças que já forjei,
no pão que já amassei
despertando a madrugada.
Eu tenho nas minhas mãos
medalhas do meu trabalho.
O suor pinga do rosto
que estanca se bate o malho
pra comer, ir embora.
E o peito por dentro chora
pelo aluguel atrasado,
pelo corpo esfarrapado,
pelo querer desgastado.
O dinheirinho que ganho
pra pagar tudo no mês
dá pra garrafa de cana,
whisky do seu bacana,
que consome de uma vez
num bate papo qualquer
onde falam de mulher,
de ir na Europa de novo...
Só não comentam do povo,
povo tem ocasião.
“O povo vai se lembrado
quando for aproximado
o período da eleição.”
E o povo sempre calado,
um futebol bem jogado,
um samba bem caprichado,
a cerveja e o carnaval,
e o pobre nem se dá conta
como é que a vida vai mal.
Mas se dá conta doutor
o povo está se cansando,
o povo está se agitando,
o povo está esperando,
ainda está acreditando
que quem está na direção
mude a marcha, bote freio,
que dirija sem receio,
sem medo de reação.
Comece tudo de novo.
Puxe a espada do seu seio,
grite: “agora é a vez do povo”
antes que o povo faminto,
cansado das excelências,
das vergonhas,
incoerências,
das injustiças,
indecências,
grite: “agora a vez é minha”
e parta pra independência
com as facas da cozinha.


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